29 de julho de 2011

Corpo interrompido

Um pequeno descuido, sonhos em pedaços. Um corte sutil, toda virtude comprometida. Uma vontade incontrolável, todos os reflexos desfeitos. Uma imagem de quase-perfeição. Uma incisão do umbigo ao pescoço, lágrimas vertem. Corpos imersos num lago de memórias perdidas, ou numa banheira de desespero instantâneo. Beleza exposta em inércia assustadora, tragicamente perene, contraditoriamente efêmera. Toques nervosos em carne mórbida. Suaves como plumas, frios como geleiras. Tão perigosos em sua incapacidade, tão dispostos a nada, e tão cientes de tudo que não sabemos. Lânguidos braços, pálidas faces. Terão encontrado o objeto de nossos anseios? Terão descoberto o significado de toda a energia gasta em mecânicas fórmulas de persecução de felicidade? Poderiam lábios ressecados contar-nos segredos? Beijar-nos antes que levem embora nossos sorrisos dos dias seguintes? Ou será que só de indiferença se constituem os corpos interrompidos?

28 de julho de 2011

Mil odisséias

Não parece que ainda ontem as respostas costumavam habitar a ponta da língua? Não se vê os invernos passarem, até que passem e sigam direto a um tempo em que não é mais possível contar os anos com os dedos das mãos. Agora se requer 1000 odisséias para satisfazer a mínima curiosidade. Séculos de trabalho árduo resultam em algumas dezenas de páginas que, via de regra, o mundo despreza, em troca de sábados ensolarados e domingos de falsas catarses. E ao longo da tortuosa passagem por mensuráveis quedas de areia, caminha-se e comenta-se que se é feliz, e se acredita nisso, mesmo quando se prega niilismo (inconscientemente, ressalte-se). Não se percebe o volume de neve aumentando progressivamente. Hoje, poeira no casaco, amanhã, lamentos nevrálgicos. Ponto! Não satisfizemos nossa sede de saber o suficiente.

26 de julho de 2011

Ócio destrutivo

O amontoado de derrota materializada que envolve-lhe os músculos acaba com qualquer romance, mesmo (e principalmente), aqueles ainda em fase de esboço. Nem as suas espáduas tão elogiadas serão capazes de salvá-lo se, por acaso, nessa corrida de egos, eu chegar primeiro, ou minha auto-estima, não importa. A ordem dos fatores não altera o produto, salvo, claro, quando compromete a homogeneidade minimamente planejada de afazeres e despropósitos que preenchem esse ócio involuntário e esse mormaço de angústias dos quais venho tentando escapar. Esqueci onde pus as chaves. Não sei se o tempo me permite encontrá-las antes que o sono nos derrube. Ajoelha e reza. Mais uma noite sob tortura, e eu jamais verei o sol nascer novamente.

25 de julho de 2011

Trabalho amargo

Manter um todo mais ou menos ordenado de modo que se possa formar uma imagem passível de ser compreendida por nossos olhos excessivamente mundanos é um trabalho realmente difícil e custoso. A instabilidade é crucifixo e o desprezo, meu demônio, carinhosamente alimentado a sangue e suor, leve-se em conta. Por essa pequena razão, necessito manter uma distância tal que sua energia não seja capaz de desnaturar minhas moléculas neutralizadas por insuficientes noites de sono e fins de semana em desertos de ruído. Neutras? Sim. Mais pela impossibilidade de não ser como Quasimodo do que por ter me conformado ainda nascituro. Não é tão difícil, meu caro, viver com pesar. Qualquer dia se aprende a seguir sem ele. Quem sabe assim se possa passar mais tardes sorrindo da janela; um sutil sinal de indiferença que extrai sua segurança da crença de que a raridade com que raciocinas não o permitirá notar absolutamente nada, até que eu me canse e feche a janela.

24 de julho de 2011

15 minutos no paraíso

Tentavas arduamente suprimir o gosto do álcool com tragos nervosos de tabaco e boa aparência. Tamanha benevolência era quase capaz de purificar toda a minha falta de amor próprio. Disse-lhe: "Tua beleza lhe concede carta branca. Podes me matar agora e jamais ir ao banco dos réus". Eu, que não bebo, me embriaguei de ti. E antes que o desprezo me assome, me deixa pegar em tua mão e em teu rosto. Rápido! Que já não é mais manhã. 15 minutos no paraíso me custam 15 anos no inferno.

Protágoras

Diz-me ela: "É melhor você parar enquanto pode. Qualquer dia vai acabar arrasado". Eu, numa errônea interpretação, tenho a ousadia de contestá-la, no torpor eterno ao qual alguns chamam de normalidade, os mais insatisfeitos ou os excessivamente conformados, alienação. Perdoa-me, que foi sem querer. Não uso encostos como desculpas. Além de pegar mal, soa brega. A justificativa da vez - foi inconsciente - pode ser verdade, pode ser mentira. "O homem é a medida de todas as coisas".

23 de julho de 2011

Início

Ares de cientificidade costumam cobrir tudo que escrevo. O que não quer dizer que seja ciência, mas somente que o autor é pretensioso (ou que é incapaz de fazer - ou querer fazer - de outra forma). E em sua desmedida ambição ou em seu impulso mercenário, desconsidera o dano e as feridas, as dores nas costas e nos calcanhares, a vista turva e a barriga vazia. Tal como um cavalo que persegue uma cenoura pendurada a uma vara erguida por quem o monta só enxerga o objeto de sua cobiça, necessita da coragem de outrem, da força de outrem, para derrubar o fardo em suas costas e fazê-lo perceber que os quilômetros percorridos em sua faina inconsciente não o levaram a lugar algum. Resta-lhe vencer o sentimento de tempo desperdiçado e retroceder, reaprender a sentir, a ver, a tocar e a ser tocado. E talvez assim, com todos os sentidos despertos pelo atrito da descoberta recém feita, sua libido saia do coma e Eros finalmente retorne ao lar.