31 de agosto de 2011

Retração

Bom seria se a vida saísse pela boca, como o coração, na expressão corriqueira. Pois na vigília dos anos, o que não se explica, ameaça. Vez é bom, quase sempre é ruim. Nunca se sabe do que se vê, mas o que se vê não precisa pensar duas vezes para soprar fumaça em face alheia. Fumaça é o de menos. Via de regra, pau e pedra fazem as vezes de escudo. Disse uma vez que se mata por medo ou sadismo. Dos dois, não sei a razão pela qual me matam muito e um pouco a cada dia. Se houver terceira razão, talvez eu encontre sentido. Vida pressupõe socos no queixo, por isso pena é só o que sinto por quem é feliz e não se questiona. Por isso amo quem despreza essa bruxa elegante que a tudo dá fôlego. Por isso invejo quem passa por pontes com olhares serenos e tocam com dedos suaves mas decididos as altas sacadas de arranha-céus. No fim das contas, estavam certos os poetas raivosos: "I'm safe here in my room, unless I try to start again".

29 de agosto de 2011

Incubus

Demônio disfarçado em carne, não contente em invadir somente sonhos, resolve roubar-me os momentos de sossego na vigília. Há justificativa no tremor das pernas e no apertar da traquéia. Basta o traçar duma linha invisível, de pupila a pupila, por milésimo de segundo, e o serviço está feito. Pilares e muralhas milenares ruem. Mil mãos apertam o coração com toda força num frenético dançar de braços. Braços cujos caminhos conduzem a um pescoço majestoso e a uma cabeça ornada por fios indescritivelmente perigosos, preenchida por olhar lupino e arcada felina. A volúpia que dessa clara confissão de masoquismo resulta é purificador. Dor emocional, prazer carnal - ou vice-versa. Deve-se extrair o máximo de benefício que essa situação pode proporcionar. O sofrimento converte-se em ganha-pão, mas o contrato de infelicidade não admite recisão.

18 de agosto de 2011

Non-serial killer

Nem sempre é matar ou morrer. Para nós, no mais das vezes, é matar, somente. Olhei para o pequeno inseto abatido por metros, agonizando no assoalho, e pus-me a especular se tolheria sua vida ou não. Decidi que não. Mas o "não" não era mais forte que o medo de um ser inofensivo. É por isso que se mata? Por medo? Por sadismo também, deveras. Mas não sou sádico. Sou ordinário demais, até. Um acesso de loucura, talvez, assistir ao corpo decompor-se, em busca de cura para a apatia. A crueldade foi o ato em si, que busca absolvição na leva de justificativas que se me apresentam. Não ter sido capaz de conceder um velório decente a um ser muito superior a mim em qualquer aspecto só não é mais incômodo do que a constatação de que essa inferioridade que me imponho contradiz a massa de puro egocentrismo dos meus "semelhantes". No fim das contas, morrer não é, de maneira alguma, pior que matar.

17 de agosto de 2011

Carrara

Dores no objeto decorrem de força imposta pelo sujeito. Desconsiderou de que material fosse feito a massa em vias de solidificar-se. Pensasse talvez que fosse de qualidade superior, e ainda pensa, em verdade. Por isso não teve dó nem piedade ao empurrá-lo contra a correnteza, ao moldá-lo segundo seu ideal de perfeição. Um ideal grande-pequeno, por isso mesmo alcançável. Perfeição minha, acentuo. Não foram poucas as vezes em que pedaços caíram de tanto rebuscamento empreendido de forma falha. Colocasse-o de volta. Um pouco mais de cuidado. Uma dor mais aguda. Mas o resultado faria valer a pena. Ainda dói, não foi completamente finalizado. Quando deslumbrar a imagem perene de traços delicados, de conteúdo útil e severo, figurará entre as obras de perfeição do Partenón. 

13 de agosto de 2011

Auto-flagelo

A rotina é de trivialidades. Mas as consequências são de cinema. Semanas correm e acrescento marcas e marcas na parede. Cada uma representa um drama. Dramas naturalmente não duram segundos, mas aprendemos a estendê-los em auto-flagelação. Os choques são mais abruptos que rasteiras e mais dolorosos que qualquer dessas outras dores que tanto tememos. Mesmo quem não acredita em karma, interpreta os castigos como restauração de um equilíbrio instável, cujo lado positivo se encerra no acordar a cada dia. Eu penso que existir é o lado mais negativo de todos, só não pior do que desconhecer o não existir e não poder sabê-lo melhor ou pior. E do nascimento à morte, se tenta desesperadamente torná-lo suportável, com festas e jogos. Para estes, gritos desafinados não significam nada. Nem traços desconexos. A contradição é que a disformidade representa muito mais para quem busca sentido, do que para quem ignora e se entrega completamente.

11 de agosto de 2011

Sado-Maso

Persiste em matar-me aos poucos e regozijar-se aos montes da energia desprendida num ato de piedade tão mal visto. Se eu pudesse ver através da venda preta de listras brancas finas e diagonais e meu olhar de medo disfarçado em coragem excessiva encontrasse o seu, talvez eu descobrisse o sentido da vida, que se esvaía em cacastas de sangue do meu baixo ventre ao assoalho. Todos os instrumentos de tortura dispostos organizadamente sobre a fria placa de metal indiferente e estéril. Amordacei minha alma, de modo que não pudesse gritar. Em contrações involuntárias de bíceps, tríceps, quadríceps e qualquer outro músculo terminado em "ceps", experimentei a dor que, em você, se confunde com um prazer transcendente. Tudo me leva a crer que é tênue a linha que separa a dor do prazer, daí a dor-de-prazer que costumamos falar. Nos ultimos movimentos que experimento, procuro sua forte estrutura óssea, tão bem representada por uma mandíbula destruidora de expectativas. Da semi-escuridão ao total bréu, consegue desvencilhar-se de amarras um dos muitos dentro de mim, e grita para o vazio, de dor e desespero, e encontra um sorriso embassado, dissipando--se, em versos sussurados: "Sou tudo que jamais poderá ter".

6 de agosto de 2011

Ad aeternum

Vi seus rostos sorridentes e seus acenos de aprovação, e fui acometido por uma repentina vontade de esconder meu próprio sorriso, por mais artifical que fosse. Naquele momento, percebi que sorrir era uma obrigação. Já sabia disso, na verdade, mas a mecanicidade da prática me levou a esquecer. Lembrei também que sou alma inquieta que procura sentido para a vida e para tudo. Agora sei a origem do meu pessimismo. Não me desapego dele, que me faz tanto mal quanto bem, mas larguei de ser egoísta e substituí o mal que me proporciona por um outro bem de uma outra variável. Não consegui, de qualquer forma, abandonar minha pesquisa sem objeto e minha ânsia fadada à insatisfação. Causa e efeito seguem até o infinito. Trabalho tão árduo quanto aquele outro sobre o qual já falei, infrutífero, porém. Vai até o último ato, mas finda inacabado, em verdade.

5 de agosto de 2011

Over and over and over...

Dizem que quando muito se repete uma palavra, ela perde o significado. O meu processo é inverso, repito-a 100 vezes até que me diga algo. Me debruço incansavelmente sobre repúblicas e histórias diversas, percorrendo caminhos que, como num jogo, me obrigam a retornar ao início em caso de queda. Conhecimento que me recuso a adquirir por experiência. Força que me impele a ver sem, às vezes, enxergar. Culpa do desejo. Ânsia de término que me engana ao fazer-me crer que de uma forma ou de outra saberei de coisa qualquer que me torne ser valioso.

4 de agosto de 2011

Nosce te ipsum

Engana-se quem acha que cada um é um somente. Tolo quem culpa transtornos em lugar de aceitar a inebriante constatação de que naturalmente se travam verdadeiras batalhas dentro das paredes de células e sangue. Quem duvidará que no turbilhão de sentimentos experimentados encontram-se os mais radicais antagonismos, as mais evidentes contradições? Quem tem a ousadia de conceber um ser absoluto numa realidade cuja exteriorização objetivada tem o fundamentalismo como a mais letal das armas? Não percebe que o mesmo que ama detesta? Não vê que a mão que cura, amputa, que a amputação salva, e que nossa salvação finda? Senta-te e conversa consigo mesmo, que ninguém mais, além dele próprio, deu a Arquimedes a sabedoria que ansiava.

1 de agosto de 2011

When the sun goes down

Que pena! Era sonho apenas. Aquele sofrimento apaixonado que aceitei de bom grado. A certa distância, contemplo-te em seu átrio de solidão, enquanto aprecia o pôr do sol, interrompido por pilares de concreto. E prédios, em sua poesia moderna, me vertendo lágrimas, riscando o horizonte carmesim com sua elegância indiferente. Você, de tão solitário, belo, que dor no peito e ferida no coração causam. Há quem diga que já havemos conjugado. De início duvidei e logo depois pus fé. Piedade vem primeiro, arrependimento logo atrás, desprezo fechando o ciclo. Creio que nem me conheças mais, com pastas e rancor. Eu, da minha parte, me concederei o doloroso prazer, piegas talvez, de te amar ainda assim, em nome de sua cruel beleza e divinal existência.