13 de maio de 2014

Deslocamento

Começa assim, sutil. Não se percebe de imediato. Requer-se um tempo relativamente longo de desconforto, como uma premonição inconsciente ou como olhar, sem, no entanto, ver. A primeira constatação veio como um tiro no peito, com grande impacto e grande estrondo. Consistiu em um sentimento de deslocamento, como se jamais, em toda a minha vida, ou no máximo umas duas ou três vezes, eu estivesse tanto no lugar errado e na hora errada. Como se eu fosse uma mancha monocromática em uma tela  na qual foi pintado um arco-íris, corrompendo a homogeneidade e a beleza das formas. Em seguida, o peso da solidão, como se eu estivesse condenado a permanecer para sempre sentado neste banco de pedra do qual escrevo, sozinho, os lamentos que ninguém nunca vai ler. Eu seria esfaqueado pelo primeiro a quem eu dirigisse a palavra. Devo ficar aqui, como uma estátua cuja imobilidade esconde a tristeza, observando as juventudes sucessivas e o hit da moda. Agora vem o ódio, desprovido de perigo, posto que não tenho uma arma com a qual eu poderia me tornar a nova estrela do noticiário, o discípulo de Columbine, ou poderia até mesmo (o que é mais provável) tolher a minha própria vida, que nunca significou algo, e privaria os outros das dores da minha existência, de maneira que após as lágrimas de um possível (mas certamente momentâneo) luto, a vida prosseguiria em sua dança de indiferenças, no turbilhão das coisas que não saberei.

17 de março de 2014

Man of constant sorrow

I'm a man of constant sorrow. I don't believe in love and I don't have faith. The few I still had, you burned it down. I only see black and white. I can't cry when someone dies. All I can think is the bills I have to pay, the orders I have to obey and the love I had to kill to move on. I'm not in your love poem. I'm the dead astronaut in space, the dead body in the deep sea, less than a grain of sand. I'll take your memory to the grave, it'll make my body hard to decompose and my spirit too angry and heavy to rise up to heaven. Otherwise, in hell, your face will keep my calm and maybe make me smile.

14 de fevereiro de 2014

Valentim

Materializar em palavras as dores e fervores que assomam nosso frágil músculo cardíaco é um ato de abnegação para o qual poucos têm coragem. Não que estes apaixonados e amantes confessos sejam mais corajosos. No máximo, o sentimento é mais doloroso, e sabemos que não existe móvel mais eficiente que a dor. Sabemos, também, por conta da experiência, que deste ato de coragem se seguem dois caminhos, um que conduz à felicidade, e outro que conduz à morte. Por isso se trata de uma conduta que nega o próprio sujeito, que o anula, que o priva do instinto primordial de todo ser vivo, que é se manter respirando. Ao interlocutor é dada uma espada e a ele restam duas opções: bater levemente com as costas da arma em nossos ombros, nomeando-nos o cavaleiro de seus desígnios, ou trespassar nosso coração e nos deixar a sangrar e morrer. No meu caso, depois de uns tantos ferros me atravessando, depois de umas tantas hemorragias e umas tantas cicatrizes e ressurreições, fui ingênuo ao crer que estaria calejado e imune à dor. Ainda me é dado tempo, uma vantagem para me afastar com poucos danos, não maiores que expectativas frustradas e choros lamuriosos. Mas, se por um lado, desde Platão sabemos que é a razão, e não nossa dimensão irascível ou concupiscente (leia-se, coração e baixo ventre), quem deve comandar a alma, por outro, ao menos desde Pandora já é de nosso conhecimento que a esperança é a última que morre, e com ela morremos juntos.

31 de janeiro de 2014

Fogo

Nas tristes e frias noites de inverno da minha vida, o fogo persistia em seu contraste, sob o gelo, a neve e o frio egoísta, o possessivo acompanhante dos corações petrificados. O fogo atrai o olhar, aquece os ossos, humaniza. Mas o tirano gelado mantém seus súditos protegidos do calor, somente os alimentando de tristeza, a matéria que lhes compõe as almas. Nos anos que já não posso contar nos dedos das mãos, permiti, eventualmene, que o fogo me tocasse e deixasse sua marca, para então se apagar e não estar presente quando o frio moralizador percebesse a minha falta e proclamasse o tão conhecido: “Eu te avisei”, tão logo constatasse que meu corpo queimado não vingou meu coração gelado. Novamente o fogo surge, com sua voraz necessidade de incendiar tudo que minha visão alcança. Meu defeito, no entanto, não me permite aprender com os erros, e mesmo sabendo que mais e mais camadas rochosas cobrirão meu desejo quando a ignição cessar, me concederei a ousadia de me atirar às chamas, e me deixar queimar assumindo o risco de morrer sozinho nas cinzas de um amor incontido, na esperança de que quando as chamas se forem, pra onde quer que seja, meu coração as acompanhe.